sábado, 6 de outubro de 2012

Muito Obrigado

No distante Século XII, os nobres de Portugal recebiam o tratamento de “vossa mercê” (mercê significando graça ou concessão). Com o passar dos anos mudou-se para “vossemecê”. Anos mais tarde, “vosmecê”; até que em 1813 já se encontra registrada a forma “vosse”; e Camilo Castelo Branco (1825 - 1890) registra “você”. Durante meu período de vida já vi “ôcê” e “cê”. Sem contar com as variantes da internet “vc” e “c”.

Há não muito tempo também era costume agradecer algo, ou um favor recebido com uma expressão do tipo: “... por isso sou grato e lhe fico muito obrigado”. Hoje dizemos apenas “obrigado” (ou apenas “brigado”). Observe que a expressão de agradecimento estava na primeira parte da frase e a segunda parte era um reforço em que se garantia mais do que gratidão. Garantia um empenho, uma retribuição, uma obrigação tida para com quem fez algo que foi muito apreciado.

Neste contexto, pergunta o salmista: “Que darei ao SENHOR por todos os seus benefícios para comigo? Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do SENHOR” (Sl 116.12-13).

Mas, voltando a nossa língua. Embora eu creia que cada idioma possua suas peculiaridades, o Português se destaca. Eu não possuo um censo de todos os idiomas modernos, mas desconfio que o português seja o de léxico mais amplo. A Academia Brasileira de Letras classificou em seu vocabulário ortográfico quase 390 mil palavras, o que é mais do que o Inglês (o Merrian-Webster´s Collegiate Dictionary possui 165 mil entradas); do que o Francês (o Dicionnaire de l’Academie Fraçaise a la Letre possui cerca menos de 50 mil), e descontando as palavras compostas que se pode formar na língua alemã um dicionário básico terá uma quantidade semelhante de entradas.

Não creio que essas línguas sejam lexicalmente mais pobres que o Português e apesar dessa abundância de palavras que os brasileiros tem a sua disposição nossos universitários, bem formados, dominam apenas 5 mil dessas palavras, em média. E, digo com tristeza, que um dos problemas que mais afligem a nós pastores é fazer com que as traduções bíblicas sejam corretamente entendidas. Observe, apenas como exemplo, Colossenses 1.12:

Na versão mais usada (Almeida Atualizada) lemos: “dando graças ao Pai, que vos fez idôneos à parte que vos cabe da herança dos santos na luz”. Mas, o que significa exatamente “idôneos à parte que nos cabe da herança”?

A versão Corrigida, a Corrigida Fiel, a Versão Contemporânea, bem como a Almeida Portuguesa, parecem facilitar a leitura com: “idôneos para participar da herança”. Porém complicam mais, pois tiram a idoneidade de um determinado ato e a transformam em qualidade genérica.

A Nova Versão Internacional simplifica ao extremo dizendo apenas “nos tornou dignos de participar”. E a Século XXI opta por “capacitou a participar”.

Esse é um caso em que o idioma grego, por sua natureza, exige muito mais do que o nosso é capaz de fornecer com uma simples palavra, pois a ideia vai desde o capacitar a algo, ser suficiente para alguma realização, ser adequado, ou caber, até equipar, dar poderes, investir de poderes, para que participemos da herança que está reservada a todos os santos.

Obviamente é mais do que um problema de tradução, mas atinge o infortúnio que se abate sobre nós, a respeito do qual estou tentando falar.

Se lembra de como “vossa mercê” virou “cê” e de como surgiu o simples obrigado? Este fenômeno pode ser explicado pela lei do menor esforço. Mas, paralelamente, cada vez mais, se usa uma mesma palavra, com os mais diversos significados, além de seu significado normal. Hoje qualquer dicionário trará como significado de “legal” uma coisa boa, mas antes dos anos 60 “legal” era apenas alguma coisa que estava de acordo com a lei. Em nosso caso, “obrigado”, que significava originalmente uma declaração de obrigação, hoje é uma expressão de agradecimento.

Dessa forma não é de se estranhar, que nós que professamos receber de Deus tudo pela graça, nos dirijamos a ele e digamos “Muito obrigado Senhor”!

Eu ainda acho tremendamente estranho, e teologicamente é errado, mas linguisticamente é explicável. E no fundo é um grande contrassenso que alguém que declara viver pela graça, dirija-se a Deus e lhe diga obrigado. Como obrigado? Tudo foi pago na cruz. Em que estamos obrigados? Em nada! O que temos a fazer? Apenas em receber a sua graça. Tomar o cálice de sua salvação como nos disse o salmista.

2 comentários:

Milton Jr. disse...

Caríssimo Fôlton,
Há tempos penso em escrever um texto expressando meu estranhamento com o "muito obrigado" dirigido ao Deus da graça.

Ainda bem que você o fez, de forma primorosa como sempre. Só me resta agradecer e passar para frente.

Grande abraço.

haghios disse...

Presado Pastor.... de fato a gratidão não é a melhor Virtude nossa (Seres Humanos)somos ingratos com Deus .. com as pessoas... Deus tem me ensinado nestes últimos 12 anos .. que a gratidão não depende das Circunstâncias... sou muito grato á Deus pois Ele tem me ensinado que apesar de todas as Lutas .. a Vitória na Presença Dele é certa... pois isto Agradeço Muito pelo seu "Cuidado" com a Minha Vida ... com certeza Deus irá lhe Retribuir em dobro... Ainda em Busca da verdade .. no Amor de Cristo.... ahhh... Feliz Natal e Próspero Ano Novo .. No Amor de Cristo Jesus ...