sábado, 8 de março de 2014

Deus e o Estado

Chamamos de Estado o conjunto de instituições que governa um povo. Modernamente ele é analisado como possuindo três componentes: A que estabelece, em nome do povo, as obrigações a que o povo se sujeitará (legislativo); a que executa e impõe a execução dessas obrigações (executivo) e a que julga se alguém se desviou de cumpri-las (judiciário).

Nos Estados antigos essas três componentes eram resumidas na vontade de quem detinha o poder, seja pela força ou por herança. Um bom exemplo é o Egito em que José como mão direita do faraó, estocou alimentos e no tempo de escassez, em troca deles, recolheu todo dinheiro que circulava (Gn 47.14-15). Findo o dinheiro, adquiriu, ainda em troca de alimentos, todos os rebanhos e propriedades bem como os inadimplentes como escravos (Gn 47.16-21). Finalmente, estabeleceu nova ordem onde o povo passou a ser arrendatário da terra a uma taxa de 20% de tudo o que fosse produzido (Gn 47.23-26).

Não havia limites para o poder do governante e consequentemente para o tamanho do Estado.

A legislação é pedra de toque: Enquanto a legislação nos Estados antigos era a expressão da vontade do soberano, nos Estados modernos (onde, via de regra, os legisladores são eleitos) ela representa a vontade do povo que os elegeu. E a origem da legislação era a diferença básica entre o Estado implantado por Josué na Terra prometida: Deus era o único legislador.

Inicialmente esse Estado era o mínimo dos mínimos. Não havia um governo central e cada tribo era governada pelos seus próprios príncipes. Quando afrouxavam a observância à lei divina, Deus levantava um inimigo para oprimi-los e quando se arrependiam, Deus lhes suscitava um Juiz que os conduzia em vitória sobre aquele inimigo. Isso se repetiu quatorze vezes em um período de quatrocentos anos.

À luz da Bíblia o embrião de todo governo é a justiça. Fazer justiça é a missão prioritária de qualquer governante, depois defender a nação de ameaças externas e defender os oprimidos. Tudo isso de conformidade com a lei de Deus, que  dispunha até sobre a guerra (veja o capítulo 20 de Deuteronômio).

Naquele Estado implantado por Josué resolveram então centralizar o governo e transformarem-se em uma monarquia imitando seus vizinhos. Deus os alertou sobre qual seriam os direitos do rei (recrutar soldados e servas, desapropriar bens e cobrar impostos) e os advertiu a não o buscarem reclamando (1Sm 8.11-19), mas preferiram fazer conforme o próprio coração. Em outras palavras: aumentaram o poder do Estado (cuja natureza é sempre usurpar o domínio de Deus): “Atende à voz do povo em tudo quanto te diz, pois não te rejeitou a ti, mas a mim, para eu não reinar sobre ele” (1Sm 8.7).

Os reis sucederam-se sobre Israel. Depois de Saul, Davi estabeleceu sua casa e seu filho Salomão agigantou o Estado o quanto pôde, mesmo tendo de desobedecer a Lei de Deus. A política centralizada e seu suporte militar renderam a Salomão muitos inimigos, até seu supervisor de trabalhos forçados, Jeroboão, teve de fugir para o Egito para escapar de sua ira (1Re 11.26-40). A economia, também centralizada, dependia totalmente de impostos altíssimos.

No reinado de Roboão, filho de Salomão, as demais tribos se revoltaram contra a de Judá exatamente pela exorbitância dos impostos que Roboão insistia em continuar cobrando e criaram o reino do norte no qual diversas famílias sucederam-se no poder. A tribo de Judá, seguida pela metade da tribo de Benjamim, continuou fiel à família de Davi. Dentre eles Uzias exemplifica bem este tema.

Uzias reinou cinquenta e dois anos sobre Judá, e, mediante a guerra e a dissuasão militar, solidificou as fronteiras, edificou torres de defesa sobre os muros de Jerusalém e ao longo do território com a missão de mantê-lo sob vigilância e garantir a segurança dos trabalhadores do campo. Era tido por “amigo da agricultura” e possuía um exército muito bem armado. Pelo relato do cronista (2Cr 26), parece que seus gastos militares trouxeram prosperidade. Ensoberbecido, quis aumentar o poder do Estado até sobre a religião, porém os verdadeiros sacerdotes (“homens da maior firmeza”) o resistiram e Deus o castigou.

O contraste entre o tamanho do Estado nos dias dos Juízes e nos dias de Salomão (ou de Uzias) é muito grande. É certo que as palavras “Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto” (Jz 17.6 e 21.25) trazem a impressão de uma apologia ao Estado monárquico, mas, bem examinadas, revelam muito mais a insubordinação de um povo que não se submetia à lei divina. Se nos Estados modernos a democracia depende do comprometimento de seus cidadãos com as leis, na época dos Juízes o cumprimento das leis divinas era a essência da manutenção daquele Estado e o esquecimento delas foi a razão de seu fim. Eles não questionaram as leis de Deus, mas também não as obedeciam e, pior, pediram um rei que impusesse seu cumprimento. Ou seja: aumentaram o Estado para que os tutelasse. Em vez de cumpri-las por temor de Deus, estavam dispostos a cumpri-las pelo temor ao Estado.

Porém, essa não é a natureza do Estado (fazer cumprir as leis de Deus). Sua tendência natural é impor suas próprias leis, assumindo o lugar dele. Quanto maior é o Estado, maior será a independência de Deus. Num Estado que garanta a todos o básico, mais cedo ou mais tarde, Deus será esquecido e o exercício do amor ao próximo se tornará desnecessário. Não haverá por que orar pelo “pão nosso de cada dia”, pois o estado o fornecerá. Não haverá por que se preocupar com o bem estar dos menos afortunados, pois, se existirem, assisti-los será obrigação do Estado. Em outras palavras: As duas tábuas ficam desnecessárias.

A existência de governos (e consequentemente do Estado) sempre fez parte do plano divino e depois da queda eles se tornaram indispensáveis. Porém, todos os governos, sejam familiares, locais ou nacionais, devem refletir o governo divino, pois até mesmo os que nasceram (e/ou se mantêm) pela força derivam sua autoridade de Deus. É o que aprendemos do apóstolo Paulo através de sua carta endereçada à Igreja de Roma escrita nos terríveis dias de Nero: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação” (Rm 13.1-2).

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